Na Nazaré, Rui Salvador foi vulcânico na despedida das gentes nazarenas e de uma praça que tem importância na carreira.
Nazaré é uma terra de tradição e de afectos e quem lá vai, de lá não quer sair, tal a forma como é acolhido pelas gentes humildes e de trabalho.
Rui Salvador fez da humildade e capacidade de trabalho, as bases para que dele os aficionados gostassem.
Nesse sentido, ficou conhecido como o cavaleiro dos ferros impossíveis, mas no mundo actual, ele representa bem mais do que a capacidade de pisar terrenos de compromisso diante da bravura dos touros.
Homem de família, afectuoso, emocional, mas ciente de onde vem e para onde quer ir. Apenas assim, desta forma, conseguiu 40 anos ao mais alto nível, e mostrando-se ao melhor nível na temporada em que se despede das arenas.
Vai fazer falta, porque ainda está com muita da sua capacidade. Vai fazer falta porque é distinto.
Ontem, na 3ª corrida da temporada tauromáquica da Nazaré, lidaram-se touros da ganadaria Passanha, pelos cavaleiros Rui Salvador, Luís Rouxinol e João Moura Jr.
Pegaram os forcados de Montemor e Aposento da Moita.
Após as cortesias, foi prestada homenagem a Rui Salvador, através de um texto lido por Francisco Morgado, seguido de entregas de lembranças por parte da Confraria de Nossa senhora da Nazaré e da empresa Doses de Bravura.
Lembram-se das emoções que foram escritas no início deste texto? Pois bem, o público ovacionou prolongadamente, Rui Salvador emocionou-se e segurou as lágrimas, as mesmas que o seu bandarilheiro João Pedro deixou cair de forma discreta, secando-as num ápice.
Rui Salvador abriu as actuações com um excelente primeiro ferro comprido. No segundo, levou forte toque na montada. Na série de curtos, o cavaleiro esteve lidador, poderoso e totalmente entregue a um público que o acarinhou. Destaque para 3 bandarilhas curtas de nota assinalável, desde a preparação ao remate das mesmas. O mestre esteve vulcânico.
E na segunda actuação foi um vulcão em erupção, repleto de intensidade em tudo o que fez, e que fez bem feito.
Rui Salvador esteve em grande plano frente ao quarto touro. Lidador de início ao fim, escolhendo bem os terrenos dos touros e conseguindo cravar em seu sítio, numa demonstração de mestria e conhecimento. Saiu sob fortíssima ovação e teve música após o primeiro comprido, numa decisão positiva da directora de corrida como homenagem à sua carreira e despedida desta praça.
Deu duas voltas à arena, após a lide do 4º touro, com o público de pé, em sinal de gratidão e reconhecimento.
Falta muito pouco para deixarmos de o ver tourear e só apetece parar os ponteiros do relógio!
Também já com largos anos de carreira e provas mais que dadas na tauromaquia, Luís Rouxinol surgiu exuberante na Nazaré, em modo pássaro livre e com vontade de ser feliz. E à sua maneira foi!
Luís Rouxinol enfrentou um touro que lhe colocou dificuldades, com o cavaleiro a resolver, com esforço e resiliência. Uma actuação de garra, com destaque para dois curtos de boa nota e um par de bandarilhas. Na parte inicial da actuação, levou forte toque na montada, perfeitamente evitável.
Na segunda actuação, Luís Rouxinol destacou-se em 3 ferros curtos. Porém, o cavaleiro quando a arte não lhe flui naturalmente, ele vai ao fundo da alma e saca de lá uma força que impõe na arena e que acaba por colocar o público entregue ao seu esforço. A experiência de Rouxinol é exímia em fazer brilhar o que muitas vezes os touros não querem ou os cavalos não deixam. Ontem, Rouxinol voou na onda (ou não estivéssemos perto do canhão da Nazaré) da alegria e do afecto de um público que o aprecia.
Por fim, o mais novo cavaleiro de alternativa em cartel, João Moura Jr.
João Moura Jr esteve em plano positivo, mas não redondeando a primeira lide. Impactante na brega, nos ladeios, nos recortes e remates das sortes. As reuniões nem sempre foram cingidas, ainda assim teve 2 ferros de muito mérito e ainda um palmito cravado em sorte Mourina.
Porém, foi frente ao último touro da corrida que colocou o que melhor tem na sua alma e veia artística.
De forma indiscutível, Moura Jr é top 3 nacional. E como tal, o bom não basta. É injusto? Talvez. Mas é sinal de que a sua qualidade leva-nos a exigir o melhor de si.
E ontem, frente ao sexto touro da corrida, toda a lide foi harmoniosa, sentimental, intensa, vibrante. Destaque para um primeiro curto em sorte cambiada, com o touro muito junto a tábuas, elevando o mérito, para rematar com duas Mourinas de boa nota e o público entregue a si.
João Moura Jr. carrega em si um apelido de importância, mas mais do que isso carrega em si parte daquilo que pode ser a qualidade da tauromaquia nacional no futuro. Que o acarinhemos, mas que sejamos exigentes. Porque da arte dele, podem vir as emoções mais bonitas dentro de uma praça de touros!
Quanto aos forcados, noite épica e luminosa para o grupo do Aposento da Moita, com o grupo de Montemor a estar bem, porém num patamar abaixo.
Assim, por Montemor, Afonso Antunes foi dobrado por Francisco Borges (pega concretizada à quinta tentativa efectiva do grupo), Miguel Casadinho concretizou a pega ao primeiro excelente intento, com galhardia a aguentar a força do touro, até o grupo fechar correctamente, e Bernardo Baptista concretizou a pega ao segundo excelente intento.
Já pelo Aposento da Moita, João Freitas concretizou a pega ao primeiro intento, com uma excelente execução, aguentando bem o derrote do touro e com o grupo a fechar bem, após a “viagem” do forcado na cara do touro. António Lopes Cardoso concretizou com mais uma excelente pega à primeira tentativa, lamentando-se a lesão de um dos ajudas que saiu de maca. Por último José Maria Duque concretizou a pega ao primeiro intento.
Os touros de Passanha exigiram credenciais aos toureiros, não sendo uma noite de apoteose ganadeira, que ainda assim deu volta à arena após a lide do 4º. Bem em termos de apresentação, distintos de comportamento e força.
No capítulo dos bandarilheiros, destaque para Duarte Alegrete e João Pedro Açoriano. O primeiro faz tudo com uma naturalidade e suavidade desarmantes, fruto de uma capacidade que parece de nascença. O segundo está num momento de forma excelente e ontem marcou a diferença pela classe, estética e poder.
Corrida bem dirigida por Ana Pimenta, assessorada por João Candeias.
Um aplauso ao público da Nazaré pela enchente (poucos bilhetes ficaram por vender), pela entrega aos artista e ao espectáculo e por ontem os toureiros terem triunfado, mas não saírem em ombros. Alegria, entrega e exigência de mãos dadas.
Texto: Rui Lavrador
Fotografias: Carlos Pedroso