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Domingo, Junho 22, 2025
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Mítica corrida do Dia de Portugal em Santarém marcada pela bravura do povo português

Mítica corrida do Dia de Portugal em Santarém marcada pela bravura do povo português, com um cartel que estava programado desde janeiro para esta corrida. Com cavaleiros de excelência nas pessoas de João Ribeiro Telles e Francisco Palha, e uma vinda exclusiva a Portugal do matador José Maria Manzanares. Os “Gigantes Adamastores” seriam os toiros de Murteira Grave (toureio a cavalo) e Álvaro Núñez (toureio a pé), porém ficaram aquém do que se esperava. 

Texto: André Nunes / Fotografias de Carlos Pedroso

Um sonho português de ferro e areia

Aconteceu a 10 de junho, feriado e Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas na Monumental Celestino Graça, um momento em que vimos atuar “aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da Morte libertando” mesmo à nossa frente, com o engenho que toureiros de nível conseguem ter, tal como Luís de Camões descreveu a viagem intrépida dos portugueses na sua obra “Os Lusíadas”.

Em Santarém, os toureiros ficaram um pouco aquém do estatuto de heróis iguais aquelas que Camões refere n’Os Lusíadas. 

Sem “velhos do Restelo” por entre a multidão entusiasta, a praça estava preenchida com aproximadamente três quartos fortíssimos. Com milhares de fãs da Festa a dinamizar a sua identidade e, logo no início, não faltou o habitual e muito esperado: o nosso hino nacional, “A Portuguesa”.

Por ser um dia diferente, e uma corrida profundamente enraizada na cultura portuguesa, abordaremos esta corrida como se estivesse num tempo e espaço muito próprios e particulares da existência taurina

João Ribeiro Telles: entusiasmo e rebeldia

O primeiro touro da ganadaria Murteira Grave apresentou-se distraído, ainda assim com algumas qualidades. 

Por sua vez, Ribeiro Telles cumpriu tanto nos compridos como nos curtos. Registaram-se aplausos sentidos, principalmente na ferragem curta, onde respeitou a verdade do toureio português: não enganou o touro.

João Ribeiro Telles, na sua génese irreverente, fez lembrar os contos de coragem e engenho de Viriato, face às ordens romanas. Irreverente até nos cânones de como cavalgar, atribuiu uma dose de emoção e de surpresa a esta tarde portuguesa, mesmo não tendo sido perfeito, esteve irreverente e audaz. 

Uma lide com redenção

Frente ao seu segundo touro, mostrou-se mestre a interagir com o público neste dia de patriotismo exacerbado, com tudo o que Portugal tem de melhor para dar. Foi, portanto, uma lide sólida diante de um touro mais bravo que o primeiro, destacando-se a parte final da atuação.

Ainda assim, apesar de algumas hesitações — como se estivesse a combater ordens espanholas pela independência — o grande momento chegou ao montar o cavalo Ilusionista, cravando dois ferros – já habituais – com forte batida ao píton contrário, galvanizando o público que lhe tributou fortes aplausos. 

Francisco Palha: da compreensão de um touro difícil até à conquista

Quanto à atuação de Francisco Palha, o primeiro touro Grave apresentou-se igualmente distraído, com querença em tábuas e obrigou o cavaleiro a porfiar no segundo ferro, desenhando uma sorte frontal a curta distância e reuniu de forma cingida. 

O touro obrigou Palha a lidá-lo em curtas distâncias, cumprindo a função com brio e de forma qualitativa. 

A segunda lide e o touro que parou o tempo

Já na segunda lide, Francisco Palha mostrou credenciais e conseguiu que o touro viesse a mais em termos qualitativos. 

Ainda assim, destaque para um curto com uma verdade como já não se vê, quase como nos tempos bélicos da nação: tudo ou nada, ir ou ficar, conquistar ou não. E foi precisamente aqui que Palha começou a conquistar, arrebatadamente, o público. Um segundo ferro curto reforçou a sua qualidade e caráter português no que toca à conquista.

Posteriormente, num outro ferro, foi ao píton contrário, com um cavalgar que só um português sabe como se sente — pelos campos ou junto à praia lusitana. No último, o público acompanhou o pasodoble com palmas entusiastas, até que o touro parou o seu andamento frente ao cavaleiro. Por fim, Palha após citar o oponente reuniu a preceito e com emoção num dos melhores momentos da tarde. 

Francisco Palha, com a sua verdade e com o risco que aplica nas suas lides, torna-se um autêntico D. Afonso Henriques, fazendo vibrar multidões, arrastando-as com os seus impulsos a cavalo, numa cruzada e entrega de verdade e daquilo que ele quer fazer. 

José María Manzanares: uma faena abaixo da fama

Na primeira faena, enfrentou um touro sem potabilidade, da ganadaria Álvaro Núñez, Manzanares limitou-se a estar em praça sem que anda de relevante tenha feito. Porém, importa referir, neste contexto, que os bandarilheiros estiveram em grande plano, sendo exímios na cravagem dos pares de bandarilhas.

Uma segunda oportunidade e um Manzanares renascido

Na segunda faena, o cenário alterou-se. O touro da ganadaria espanhola teve mais apresentação que o primeiro e melhores predicados quanto às suas características. Nesse sentido, o toureiro alicantino mostrou-se no capote lidando à verónica, assinalando-se ainda duas meias verónicas valorosas. 

Na muleta, Manzanares destacou-se com a mão direita com um toureio em redondo. 

O público, finalmente, reagiu com agrado ao toureio a pé. 

Santarém e Vila Franca em pegas de alma e coragem

Na arena, o valor dos grupos de forcados escreveu também capítulos marcantes da tarde.

Começaram os Amadores de Santarém, com António Queiróz e Melo a consumar a pega ao primeiro intento, com decisão e entrega, abrindo o capítulo das sortes com dignidade.

Seguiram-se os Amadores de Vila Franca de Xira, pegando de caras Guilherme Dotti, também a pegar ao primeiro intento, numa pega que, com justiça, se pode descrever como “às armas” – como mandam os cânones da valentia.

Voltando aos Amadores de Santarém, Manuel Ribeiro de Almeida protagonizou um momento de resistência impressionante. Arrastado pelo chão, lutou “pelos canhões” com a frieza de quem sabe que ferir portugueses é não ceder à dor — e assim aguentou a sua cruzada com firmeza e estoicismo, concretizou à primeira tentativa. 

Por fim, pelos Amadores de Vila Franca, foi Lucas Gonçalves a dar corpo à emoção da praça. Conquistou os gracejos do público pelo seu “ó toiro bonito”, evocando tempos idos de afición castiça. No entanto, falhou ao primeiro intento, tendo apenas concretizado ao segundo. 

Conclusão: Camões, Gama, Quixote e os heróis da tarde

Concluindo, tal como na viagem de Vasco da Gama, os portugueses voltaram a enfrentar o mar bravo da tradição e da coragem neste dia. Derrotaram, mais uma vez, o gigante Adamastor — desta feita encarnado na bravura indomável dos toiros Murteira Grave, irrepreensíveis na apresentação, apesar de falharem no comportamento. 

E como num sonho ibérico de ferro e areia, também Dom Quixote — figura quimérica que tantas vezes confundiu gigantes com moinhos — renasceu aqui, nesta arena de Santarém na figura de Manzanares… na segunda lide apenas. 

No Dia de Portugal, nesta festa maior, o que se viveu foi mais do que uma corrida: foi uma epopeia.

Com a alma de Camões, o braço de Viriato, o engenho de Gama e a ousadia de Quixote que veio “dar um braço” de verónica aos companheiros ibéricos. Se foi perfeito? Não. Mas esteve lá a irreverência artística e provocadora de nomes artísticos como Bocage, Pessoa e Camões. 

Entre falhas e glórias, triunfou a alma da Festa

Tal como o poeta Camões, que sobreviveu a um naufrágio, segurando bem alto o manuscrito d’Os Lusíadas, também eles — os cavaleiros — aguentaram, resistiram e elevaram-se, face a destinos menos sorridentes quer sejam deles próprios ou dos toiros. Mesmo com as hesitações, que pairam em demasia por esta temporada, seguraram nas bandarilhas como Camões segurou a sua obra. E foi nesse instante — pleno de risco, de alma e de verdade — que cravaram como quem escreve um verso na obra de Camões.

E, acima de tudo e como é hábito na Monumental Celestino Graça, o público do Dia de Portugal foi celebrar a sua alma lusitana. Mesmo com bastantes falhas, que hoje até não se sentiram muito a cavalo, existe espaço para festejarmos algo nosso. 

Ganhou a festa, ganhou a tradição.

“Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram”

Nota 1: eu sei que favas com chouriço é um prato nacional e patriota. Mas em todas as praças tem de parar o amadorismo de um sistema de som que não é agradável aos ouvidos nem à compreensão do que se tenta ouvir. Nota 2: O excelente trabalho dos campinos. Também eles são um símbolo nacional com a identidade portuguesa no peito. 


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